David Gonçalves de Almeida

Assinado por Adriano Peixoto, o artigo “A vida de um rio”, publicado no Arquivo Coimbrão em 1947, coloca-nos perante algumas observações interessantes – e mais originais – no conjunto dos inúmeros textos existentes sobre o Barqueiro do Mondego e a Barca Serrana.
Por exemplo, a respeito do tipo psicológico do barqueiro que cruza o rio entre a Foz do Dão e a Figueira, este jornalista do Diário de Notícias começa por fazer uma afirmação que não deixa de ser curiosa: «O tripulante das embarcações portuguesas de aspecto menos náutico é o barqueiro do Mondego”.
É que – justifica – “mesmo quando desce à foz e se mistura com os marítimos nos rumorosos cais da Figueira, não perde o ar de homem deslocado. Na barca ou em terra, longe do seu meio, é sempre um montanhês, reservado e taciturno.” Explicitando: o barqueiro do Mondego é geralmente uma pessoa que se isola dentro da barca, nos dias que tem de passar no pequeno porto “cuidando dela, cozinhando a sopa e o peixe dentro da barca, enquanto não a carregam e as velas enxugam, estendidas pelos paredões.”
Por outro lado, quando por alguns dias permanece na terra onde vive, antes de fazer viagem é sempre o primeiro a levantar-se, pois a faina começa mal rompe a luz do dia. Salienta o articulista que “a carga é feita na véspera nos portos em frente das povoações (do Cunhedo aos Palheiros, em Gondelim, Vila Nova, Ponte, Penacova, Soutelo…) ou no limite das “carreiras” dos pinhais, na base das margens fechadas do rio.” Manhã cedo, “a barca partirá, silenciosamente: a remos se há água; à vara, se o rio vai à mingua. E umas após outras, passam, Mondego abaixo.”
Muitas vezes o barqueiro é também “lenhador e roçador”. Quantas vezes é ele o proprietário ou arrendatário dos pinhais onde colhe madeira, mato e carqueja que depois transporta rio abaixo. Outras vezes “transformam-se em negociantes de lenha. Em Coimbra, os barqueiros que atracam ao porto dos Bentos ou aos cais da Portagem volvem à sua condição de homens da terra. Ajustam carros de bois e andam pela cidade a oferecer as carradas. Outros aguardam nos cais que lhes vão comprar a lenha, vendida aos centos e aos meios centos. Outros ainda transportam às costas os molhos das cavacas, oferecendo-os de porta em porta.”
Neste artigo, vindo a público no referido Boletim da Biblioteca Municipal de Coimbra, podemos igualmente ler outras observações curiosas, agora em relação à Barca Serrana:
“As barcas do Mondego medem quinze a vinte e cinco metros. São uniformes no recorte e na construção. Têm o fundo chato e uma capacidade que não excede as dez toneladas. A frente eleva-se, numa curva pouco acentuada, dois palmos a cima da ré, onde gira, mais ou menos ao nível da proa, a transversal do leme.”
“Sem velas e sem mastro parecem cães bassets – com água pela barriga” – atente-se neste curioso paralelismo, que se explica atendendo à acentuada “desproporção entre o comprimento e a altura”. “A sua linha foi outrora infinitamente mais caprichosa, atingindo quase a aristocracia romântica da gôndola.”- recorda Adriano Peixoto, observando que devido ao assoreamento do rio, “roubando profundidade às águas, houve necessidade de sacrificar o aspecto artístico ao sentido utilitário.”
Em “A vida de um rio” refere-se também que, à época, estavam inscritas na Divisão Hidráulica do Mondego cerca de duzentas barcas serranas. Observa, entretanto, Adriano Peixoto: “Mas já foram mais; quando não havia as camionetas nem existia a linha férrea Coimbra-Figueira. Nessa época muita gente da cidade universitária, que passava o Verão na praia da Figueira, fazia transportar-se nessas barcas. E as barcas traziam também para Coimbra a roupa às lavadeiras das Torres; a boroa das Carvalhosas; os palitos de Lorvão; os baús dos doces de Penacova.”
[…] “Vêm da serra e vão para o mar – carregadas de lenha. Quando voltarem, virão carregadas de sal. São as barcas serranas. Para o mar – a corrente as leva. Do mar – o vento e os homens as trazem.”