David Gonçalves de Almeida

As grandes cheias do Mondego, que a partir do século XVIII se intensificaram cada vez mais, causando graves inundações na cidade de Coimbra e nos campos que se estendem até à Figueira, começaram a ser um dos problemas a reclamar urgente solução. As marés, que em tempos, segundo se diz, atingiam Coimbra, já só chegavam, na centúria de Setecentos, a Montemor.
A ponte de Coimbra, a velha ponte romana, restaurada por D. Afonso Henriques e pelos monarcas subsequentes, bem como a Manuelina, “afogaram-se no rio”, para usar o título de um dos livros de Jorge de Alarcão. A ponte Manuelina (inaugurada em 1513 e demolida em 1873) era galgada cada vez que o leito do “Munda” subia, a ponto de algumas vezes as águas atingirem, imagine-se, o Altar Mor da Igreja de Santa Cruz.
A construção de um “marachão” de “pedra ensossa”, localizado três léguas a montante da cidade de Coimbra, “refrearia” as cheias do Mondego e faria “correr as suas águas pausada e perenemente”. Deste modo, não tornariam “as águas [do Mondego] a sobrepassar a Ponte de Coimbra nem a inundar a parte mais baixa da cidade”. Quem o defendeu foi Bento de Moura Portugal, num livro póstumo, publicado em 1821 sob o título “Inventos e Vários Planos de Melhoramento para este Reino, escritos nas Prisões da Junqueira”.
A obra apresenta soluções para as cheias no Tejo e no Mondego, para a fertilização das terras, a secagem dos paúis, o saneamento, fontes e chafarizes de Lisboa. Apontam-se depois algumas invenções no sentido de redobrar a produção das azenhas, utilizando a mesma quantidade de água, e aumentar a velocidade dos barcos na zona do Ribatejo. Ao longo do livro, é reformulada uma invenção já experimentada, sem sucesso, e que assentava no “modo de suprir a falta de vento com uma nova forma de remos”. Perceberemos todo este manancial de ideias se tivermos em conta que Bento de Moura Portugal foi um cientista reconhecido dentro e fora do Reino, tendo pertencido, inclusivamente, à Royal Society de Londres e considerado mesmo, por alguns, o “Newton de Portugal”.
Foi este grande “inventor” português que aperfeiçoou o funcionamento da máquina de Savery, “destinada a elevar a água por meio do fogo”, isto é, a máquina a vapor que originou a locomotiva, o que valeu o reconhecimento internacional de Bento de Moura.
Mas antes que nos afastemos demasiado do tema de hoje, pois a vida e obra de Bento de Moura constitui um tema fértil de conversa, vejamos os pormenores dessa ideia de construir um dique na “Livraria do Mondego”, mais precisamente na “boca que a corrente tem aberto no fundo da Serra de Morcelão, a qual ali o atravessa.”
Da descrição feita no livro dos “Inventos e vários Planos de Melhoramento” tudo aponta para que fosse ali, no sítio de Entre-Penedos. De facto, a distância de “três léguas acima da Ponte de Coimbra” conduz-nos até às proximidades de Penacova. Por outro lado, referindo que a Serra de “Morcelão”, ao atravessar o Mondego, se une à serra do Bussaco e que os “lados que lhe fazem face” [ao marachão] são de “pedra firme”, parece aludir àquele local. Há ainda mais dois pormenores: explanando os benefícios de tal melhoramento, MouraPortugal salienta que “a navegação” ficaria “meia légua mais curta, que é o espaço que se mete entre o marachão e a foz do rio Alva, onde antes de feita a obra descarregam os barcos; refere também que as terras inundadas periodicamente a montante se tornariam mais férteis, dando milho e legumes que teriam “bom gasto na Casconha, com que entestam” e que “é a terra mais falta de mantimentos que tem o Reino.”
O dique seria construído “entupindo a dita boca, de pedra “ensossa” tirada dos mesmos rochedos que lhe fazem face para cima da altura “a que há-de chegar o dito marachão, para não bulir com a pedra duas vezes.” Com que dimensões? Cerca de trezentos palmos de comprimento e o triplo de altura – propõe Bento de Moura – que calcula em trinta pés a largura do coroamento, de modo a formar uma ponte, tendo a base do paredão quatrocentos e cinquenta pés, isto é, 645 palmos.
Esta passagem sobre o marachão – frisa – revelar-se-ia muito importante porque permitiria o trânsito para o “Vale de Besteiros”, principalmente para quem viesse de Tancos, sem ter “de torcer o caminho”, não precisando, deste modo, de ir a Coimbra para transpor o Mondego.
Além desta importante passagem, a obra traria outras indiscutíveis vantagens: “restaurar a Ponte de Coimbra”; livrar a cidade “do grande dano que lhe causam as cheias”; “restaurar as terras baixas do campo de Coimbra e todos os paúis que vertem para o Mondego”; permitir “dar o campo alto todos os anos dois frutos: a cevada, primeiro, e depois, o milho”; acrescentar “per alluvionem, cousa de cem moios de terra aos possuidores das margens do Mondego”; “ficar a navegação quase todo o ano praticável entre a Figueira e o marachão, não sendo agora, senão na menor parte de cada Inverno” e como se disse acima, tornar mais férteis as terras a montante e encurtar a distância da navegação litoral-interior, “com o que levarão as mós alveiras, o sal, o ferro e o bacalhau e todas as mais fazendas mais baratas à Beira e se conduzirão o pão mais barato da raia para as vizinhanças de Coimbra quando for necessário”.
Bento de Moura Portugal nasceu em Moimenta da Serra, concelho de Gouveia, em 1702. Foi aluno de um colégio jesuíta e cursou Direito na Universidade de Coimbra. Terá vindo para Lisboa e a sua aptidão para trabalhos técnicos, aliada a um espantoso espírito inventivo, chamaram a atenção do rei D. João V que lhe financiou uma digressão pela Europa. Essa missão, que terá durado perto de oito anos, com interrupções para vir a Lisboa, permitiu-lhe conhecer Inglaterra, Alemanha, França, Hungria e Holanda.
Moura Portugal enfrentou um processo na Inquisição ao qual conseguiu escapar. O mesmo não aconteceu perante o Marquês de Pombal que o acusou, além de outras coisas, de defender a inocência dos Távora e dos Jesuítas. Apesar do prestígio que Moura Portugal tinha junto da família real, acabou por ser aprisionado em Julho de 1760 no Forte da Junqueira, onde permaneceu, em condições indignas, até à sua morte em 1776.
Já muito debilitado, foi graças ao trabalho do jesuíta João de Matos, companheiro de cela, tendo como caneta um osso de galinha e tinta feita de ferrugem, que é hoje possível conhecer muitos dos inventos deste génio português, bem como a sua proposta, pensada muito, muito antes da Barragem da Aguieira, Fronhas e Raiva (Plano Geral do Aproveitamento Hidráulico da Bacia do Mondego de 1963), para regularizar as cheias do “Basófias”.
David Gonçalves de Almeida