David Gonçalves de Almeida

Durante mais de dois séculos Lisboa deteve o monopólio do tráfico negreiro em todo o império português. Foi em meados do século XV que chegaram ao Algarve os primeiros escravos negros vindos de África. A Casa dos Escravos, situada junto ao Tejo, além das salas do almoxarife e do escrivão, dispunha de prisão e de vários pavilhões onde se fazia a triagem para posterior leilão. O “estado de escravidão” só em 1869 foi abolido em todos os territórios portugueses, pondo fim a séculos de dura violação, por aquela via, dos direitos humanos.
Do século XVII chega-nos, através de uma crónica publicada na imprensa regional, um documento relativo à venda de um escravo em Penacova.
No Livro de Notas do Escrivão Sebastião Pinto, podemos ler a observação, feita à margem: “compra q fas mel corea prebendro do duquado de hum negro a Antonio coelho da villa de penacova”.
Em português actual seria: “Compra que faz Manuel Correia, prebendeiro do Ducado, de um negro, a António Coelho, da vila de Penacova.”
A 28 de Agosto de 1646 compareceram perante António Pinto, morador na cidade de Coimbra, o vendedor, António Coelho, morador na vila de Penacova, o comprador, Manuel Correia, prebendeiro do ducado [indivíduo que arrematava as rendas do Duque de Cadaval], e os fiadores, Manuel Coelho, que residia no lugar da Carvoeira, termo de Penacova, irmão do vendedor, e o licenciado Francisco da Costa, morador em Coimbra.
António Coelho, que possuía o escravo por doação do prior de Requeixo [Aveiro], Padre José Rodrigues, declarou ter contratado com o prebendeiro de lhe vender «hum escravo preto natural de monsebique moso de pouqua edade que paresia ser de vinte e simquo anos pouquo mais ou menos corpo baixo refeito e sinais pela cara» e que lho vendia pelo «preso e comtia de trintta mil rs» a qual logo recebeu em moedas de prata, correntes no reino. Também aqui, em a grafia actual, teríamos: “Um escravo preto natural de Moçambique, moço de pouca idade que parecia ser de vinte e cinco anos, pouco mais ou menos, corpo baixo, refeito [robusto] e sinais pela cara”, que seria transaccionado por trinta mil réis.
Logo após, Manuel Coelho disse que, dando-se o caso do escravo fugir da casa do comprador para a do Padre António Rodrigues, morador em Lisboa, ele se dava por fiador e principal pagador e o licenciado Costa que abonava a fiança de Manuel Coelho.
Posto isto, os irmãos Coelho e o licenciado disseram que obrigavam os seus bens presentes e futuros. O vendedor reportou um olival no sítio do Sobral, outro ao Pereiro, junto da Senhora do Castelo, e ainda outro na Costa do Sol, tudo no limite de Penacova, e no valor de 40 000 réis. Por sua vez, Manuel Coelho, apresentou um chão, junto ao rio, no Covão, e mais dois olivais, um na Ribeira de Riba e o segundo na Costa do Sol, propriedades com o mesmo valor das do irmão, e também no limite daquela vila. Francisco da Costa, morador em Coimbra, obrigaria as casas que tinha na cidade, à Pedreira, que partiam com D. Violante, viúva que ficara de Francisco Gomes Colaço, que valiam 50.000 réis.
“E assim ficou um homem comprado”- concluía António Nogueira Gonçalves a crónica que assinou no Correio de Coimbra de 13 de Outubro de 1934, pretendendo com este episódio trazer aos seus leitores alguns aspectos da Coimbra do século XVII.
Uma história que nos transporta para personagens e locais de Penacova, mas que vai para além disso: o seu eco pode fazer-nos reflectir sobre o fenómeno da escravatura que, com outras roupagens, continua a afectar milhões de pessoas, “vítimas de tráfico humano, servidão, trabalho forçado, trabalho infantil, casamento forçado, exploração sexual, exploração para pagamento de dívida, bem como outras formas de exploração 1”.
1ACEGIS – Associação para a Cidadania, Empreendedorismo, Género e Inovação Social.
https://www.acegis.com/2020/03/escravatura-moderna-25-milhoes-de-vitimas-em-todo-o-mundo/