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Marília Alves

Nahel Merzouk, de 17 anos, de ascendência argelina, foi brutalmente morto a tiro durante uma operação de trânsito no subúrbio parisiense de Nanterre, no passado dia 27 de junho. A sua morte fez eclodir a cólera contra o Estado e suas instituições e gerou uma onda de indignação e protestos que surpreendeu até os franceses, um povo habituado a intensas manifestações de rua. Ainda mais depois que um vídeo, divulgado nas redes sociais, mostrou, inequivocamente, que o agente policial não agiu em legítima defesa. As autoridades francesas indicaram que 180 pessoas foram presas, de 28 a 29 de junho, enquanto participavam de marchas pacíficas a par de ataques violentos a prédios comerciais e governamentais, e dezenas de carros foram incendiados.

Esta violência colocou em debate uma questão considerada um tabu no país: França é um país racista? Nahel era francês, mas descendente de árabes. E é mais um episódio de um longo e traumático histórico de violência policial e racista. Num país onde existem muitas pessoas que habitam áreas suburbanas, em quase guetos, predominantemente imigrantes ou descendentes de africanos e do Oriente Médio que têm linhagens diretas e ancestrais entre os povos negros e árabes anteriormente escravizados e colonizados pelos franceses, portanto descendentes da imigração pós-colonial. É comum uma pessoa não branca ser mais facilmente brutalizada pela polícia.

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Estamos perante um problema de racismo sistémico nas forças policiais. E as pesquisas comprovam isso – jovens negros e de ascendência norte-africana são 20 vezes mais abordados pelas forças policiais do que o resto da população. Quase 100 % dos negros em França disseram que sofreram racismo no seu quotidiano. Em 2016, os próprios tribunais franceses condenaram o Estado por “negligência grosseira” determinando que a discriminação racial é uma realidade quotidiana no país. Agora, a morte de Nahel provocou reações até da ONU, entidade que recomendou que chegou o momento daquele país abordar seriamente as profundas questões de racismo na polícia. Posso dizer que a indignação não vai desaparecer se as pessoas não encontrarem Justiça. E se há práticas racistas nas instituições, é porque a própria sociedade é racista. Os membros das instituições são pessoas que fazem parte da sociedade, que logo está lá refletida.

A desigualdade social acentuada e ostensiva e o sucessivo cometimento de abusos por parte das polícias são o garante do barril de pólvora em que vivemos. E não é só em França. Por cá, a 5 de dezembro de 2001, no Bairro da Cova da Moura, Buraca, Ângelo Semedo, um afrodescendente, de 17 anos, tentava fugir à polícia quando foi atingido nas costas por um agente. O jovem foi entregue numa instituição da Justiça, com apenas 12 anos, apresentando, então, indícios de subnutrição e dificuldades de desenvolvimento que os pais – imigrantes africanos que vieram em busca de melhores condições de vida – pela miséria e falta de conhecimentos não conseguiram colmatar. Gradualmente, desenvolveu e aprendeu, aos 17 anos voltou para a família e para as condições miseráveis em que viviam. Ângelo Semedo gostava de aprender e de ouvir histórias do passado africano- colonialista. Era só um menino de 17 anos, como Nahel enterrado este sábado em Nanterre, às vezes ‘borderline’, com uma vida semelhante à de muitos outros jovens suburbanos e de famílias excluídas/discriminadas, que resistem entre a sobrevivência e pequenos percalços com a Lei. Mas a História ensina que as situações de injustiça nunca são perpétuas. Há um dia em que os injustiçados tentam fazer justiça e isso costuma acontecer de forma violenta. Aqueles jovens são movidos pela sede de justiça. Não confundir essa motivação, ou necessidade, apenas e só com a delinquência.

Em Portugal tivemos o Movimento Zero e os problemas de racismo e de violência policial persistem. A verdade é que, um pouco por todo o lado, há elementos nas forças policiais que são parte integrante do problema e que, em vez de a proteger, põem em risco a comunidade. Há um problema numa parte da polícia e que é necessário resolver, que cria algum desconforto, muito associado a grupos de extrema-direita. Ora, não faz sentido numa sociedade que é multicultural, como é a francesa, mas também a portuguesa, permitir que existam grupos racistas na polícia. Salvam-se os agentes que resistem à tendência do autoritarismo e da superioridade. Temos bons exemplos, também disso. E não têm muitas vezes o reconhecimento que merecem. Não se pode criticar as forças policiais sem recordar que esses heróis existem.

O governo de António Costa deveria aproveitar a oportunidade para refletir sobre a sua trajetória no que diz respeito ao combate ao racismo. Se na anterior legislatura muito se fez para que, no papel, o país parecesse levar a problemática a sério, desde que tomou posse o novo governo de maioria absoluta, essa trajetória tem sido de inequívoco retrocesso, tendo uma ministra negacionista sido indigitada para a pasta da Igualdade, que se destacou até o momento por ter nomeado e empossado nos órgãos dirigentes do Observatório Contra o Racismo e a Xenofobia pessoas caucasianas e sem qualquer experiência conhecida sobre a realidade em que o Observatório é suposto intervir. Tampouco desperta empatia o ato de glorificar os “descobrimentos” logo após uma visita do Primeiro Ministro ao Museu da Escravatura em Luanda. Se essa é a única reação possível por parte de um responsável que acaba de ser confrontado com os números absolutamente estarrecedores da deportação de pessoas para o trabalho escravo nas plantações do continente americano, então está aberta a porta para a relativização dos valores. Para além da consciência social, do discurso e do exemplo, o poder politico tem também de tomar medidas ao nível da regulamentação e das politicas sociais capazes e efetivas para a inclusão.

Marília Alves

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