David Gonçalves de Almeida
Aveiro e Porto honraram (e honram) condignamente os “Mártires da Liberdade”. Viseu, pelo contrário, atirou, qual estorvilho, o memorial que estava na Sé Catedral, para um “canto” do cemitério da cidade.
Em Aveiro o majestoso monumento de mármore, em honra dos liberais condenados à morte, ocupa ainda hoje um lugar central e destacado no cemitério da cidade. No Porto, os seus restos mortais foram guardados num sarcófago colocado no átrio da Igreja da Misericórdia e posteriormente transladados para um mausoléu no cemitério do Prado do Repouso. Em Viseu, também um grupo de liberais mandou construir um túmulo nos claustros da Sé para onde foram solenemente transladadas as ossadas de portugueses e espanhóis executados pelos absolutistas naquela cidade. Só que – e é aqui que incide a nossa crítica – esse memorial terá sido, há cerca de 70 anos, transferido para o cemitério da cidade, não para um lugar digno, mas atirado para as traseiras de um jazigo, num local escondido que ninguém vê.
Quando, há uns meses, fomos à Sé de Viseu, precisamente à procura desse monumento, que as crónicas diziam estar nos claustros, foi difícil descobrir a sua localização. Valeu-nos uma funcionária que, por acaso, se lembrou de uma referência existente num catálogo de uma exposição, onde se dizia que tinha sido transferido, entretanto, para o cemitério local. Da Sé, dirigimo-nos ao cemitério, mas aí também não se sabia de nada. Depois de muito procurar lá encontrámos o memorial, em granito, coberto de musgos e líquenes e com as inscrições, comidas pela erosão da chuva e do vento, praticamente ilegíveis. Aí haviam sido gravados, ao lado de outros, os nomes de penacovenses envolvidos no célebre caso da Queima da Pólvora e fuzilados em 1833.
Conta-nos António Luís de Sousa Henriques Seco, no seu livro Memórias do Tempo Passado e Presente para Lição dos Vindouros, publicado em 1880, que uma das terras do país que mais sofreu com a perseguição aos Liberais, entre 1828 e 1834, foi a vila de Midões. Acossados, alguns de entre eles vagueavam pelas terras da Beira e nos primeiros dias do mês de Agosto de 1832 um conjunto significativo deles refugiava-se na zona de S. Martinho da Cortiça “onde os povos lhe não eram hostis, e havia também muitos cidadãos comprometidos na causa liberal.”
Ao fim da tarde do dia 4 de Agosto de 1832, esse grupo de liberais foi avisado que havia chegado à Ponte da Mucela “um troço de quarenta voluntários realistas, vindos de Abrantes, escoltando um comboio de vinte carros com pólvora”. No dia seguinte, logo pela manhã, resolvem fazer uma paragem na Chamada Eira do Forno, já perto da Cortiça. A dado momento, um dos “carreiros” terá denunciado um conhecido partidário das ideias liberais que andava a apanhar fruta nas traseiras da casa. De imediato os milicianos miguelistas se atiraram ao homem indefeso, bem como a um outro vizinho. Em seu auxílio surgiu um grupo de liberais que depois de alguma troca de tiros consegue vencer os agressores que eram em bem maior número.
Com a situação dominada resolvem desviar o carregamento de pólvora e colocá-lo à disposição do capitão de Ordenanças do Carapinhal, José Dias Brandão. Só que, entretanto, chega um grupo de militares miguelistas que vindos do Norte regressavam a Abrantes. Nova escaramuça se dá na zona dos Poços, saindo de vencida, mais uma vez, os liberais. Só que, adivinhando que em breve iriam ser cercados pelas Ordenanças de Penacova e de outros concelhos das redondezas, decidem deitar fogo à pólvora. Junto à Catraia dos Poços, longe das casas, amontoam a pólvora e estendem o rastilho. Conta-se que, já perto do monte dos explosivos, o pavio se apagou. Valeu naquele momento a coragem de um antigo Sargento de Caçadores 8, um dos irmãos Sande, da Carvoeira. De rastos, aproximou-se corajosamente, reacendeu o rastilho e a enorme explosão fez-se sentir por toda a região.
Não demorou muito para que as tropas (guerrilhas) de Arganil chegassem e perseguissem tudo o que era “liberal”. Muitos tinham entretanto atravessado o Mondego, indo refugiar-se na zona dos Fornos e Alcarraques, mas os que ficaram na zona do conflito foram, na sua maioria, imediatamente presos. Às “tropas“ de Arganil juntaram-se as Guerrilhas e Ordenanças dos concelhos da região. Também a Infantaria e Cavalaria de Coimbra entraram em campo. Sucedem-se as perseguições, os incêndios (a aldeia da Cortiça terá sido reduzida a cinzas), os saques, as prisões de todos os que eram simpatizantes da causa liberal, encheram as cadeias de Mortágua e Arganil.
Alguns dos presos, que eram naturais da Cruz do Soito, da Cortiça, da Carvoeira e da Várzea de Candosa, foram transferidos para Viseu e aí acabaram por ser fuzilados no Terreiro do Rossio de Santo António, no dia 21 de Março de 1833.
Com o fim da Guerra Civil, os liberais da Beira resolveram construir um memorial numa das capelas da sé de Viseu, para onde foram transladados, no meio de solenes exéquias, presididas por Frei José António dos Prazeres, no dia 25 de Agosto de 1836, os restos mortais daqueles “Mártires da Liberdade”.
Gravado no Memorial constava o seguinte texto, hoje praticamente ilegível:
Pro libertate, charta, et regina Maria II nefando judicio insontes damnati et trucidati anno 1832 et 1833. Eorumque cineribus, in hoc sarcophago requiescentibus, in odium invisae hujus temporis tyrannidis, et perpetuam memoriam patriae meritorum virorum, civitas visensis monumentum religiosíssimo voto, communibus expensis aeterne consecravit anno 1836 die 26 Augusti.
Seguem-se os nomes dos Portugueses e Espanhóis fuzilados:
“PORTUGUESES: LAUREANO ANTONIO PINTO DE NORONHA, CAETANO JOSÉ PINHEIRO,ANTONIO ALBERTO PEREIRA PINTO MONTE ROIO, ANTONIO DA MAIA, PRESBÍTEROS SECULARES; SIMÃO DE VASCONCELLOS, PRESBÍTERO CISTERCIENSE; FRANCISCO DE SANDE SARMENTO, FELISBERTO DE SANDE, JOSÉ DE OLIVEIRA, JOSÉ MARIA DE OLIVEIRA, JOSÉ FRANCO, ANTÓNIO JOAQUIM GONÇALVES, ANTÓNIO JOAQUIM, ANTÓNIO HOMEM DE FIGUEIREDO E SOUSA, JOAQUIM JOSÉ DA SILVA, GUILHERME NUNES DA SILVA E LUIZ FERREIRA DA COSTA. HESPANHOES: D. PASCOAL ALPALHEZ. D. EUSÉBIO PASCAL, D. FERNANDO GUTIERRES GALON, D. BENTO JOSÉ, D. ANTONIO HIMNES, D. MANUEL SANCHES DE GARCIA.”
A inscrição em latim, acima transcrita, reza o seguinte:
Pela adesão à liberdade, carta e rainha Maria II, por iníquas sentenças foram inocentemente condenados e fuzilados no ano de 1832 e1833. Descansam suas cinzas neste monumento, o qual em detestação da execranda tirania daquele tempo, e para memória perpetua de varões tão beneméritos da pátria os cidadãos de Viseu religiosamente e por comum subscrição lhes dedicaram no dia 26 de agosto de 1836.
Não sabemos o porquê deste desprezo, mas não deixa de ser chocante verificar que a memória destes homens, muitos deles penacovenses, independentemente de ideologias que se possam defender, não foi (e não está a ser) devidamente respeitada e honrada.