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Marília Alves

Vou falar sobre o caso Rubiales. Não tinha pensado escrever sobre este assunto, sobejamente – e ainda bem que assim é – abordado nos meios de comunicação social, mas julgo que não seria eu se não o comentasse. Um beijo forçado não é um ato amigável, não é um ato romântico, muito menos de conquista ou sedução. Trata-se de um abuso. A fronteira onde assentam as relações é algo muito simples, chama-se consentimento. Após todas as conquistas civilizacionais, que tempos são estes em que é, ainda, preciso defender o óbvio?

Luís Rubiales, presidente da Real Federação Espanhola de Futebol, durante a cerimónia de premiação da Copa do Mundo Feminina, conquistada pela seleção espanhola no último domingo, em Sydney, prende, nas suas mãos, a cabeça da jogadora Jenni Hermoso, beija-a na boca e dá-lhe pancadas nos rins.
Jenni podia estar a celebrar e a gozar o título de campeã do Mundial de Futebol Feminino, feliz, sem grandes preocupações senão as de receber felicitações. Contudo, por causa de um homem que se aproximou dela e a traiu num gesto de abuso de poder, a atleta de 33 anos, viu-se envolvida numa polémica humilhante que, seguramente, não desejava, quando devia estar a desfrutar da sua grande conquista desportiva e a projetar novos sucessos para o futuro.
Do outro lado, temos um homem, seu superior hierárquico, que beija à força uma mulher que lhe é subordinada, numa total falta de respeito e violação da integridade física e moral da atleta. A cena do beijo é a ponta do icebergue da situação abusiva de poder que muitas atletas têm vindo a denunciar há anos. É a traição de Judas, subverte violentamente a sua relação de respeito em que o outro, no caso a mulher, é degradada, desconsiderada e destituída da honra e consideração que lhe são devidas. A sua palavra não contém mais nenhuma verdade; a sua vida “não vale mais do que trinta moedas”, depois que um homem se sentiu tão à-vontade no seu abuso, tão inconsciente da gravidade do facto, tão naturalizado no ascendente e no domínio, que fez o que fez perante uma plateia de milhões, na presença da própria rainha de Espanha, de todos canais televisivos e meios da comunicação social.

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É um beijo. Há muita gente, sobretudo da minha e da anterior geração, mas também da atual, que entende não ser nada, tal a forma como sempre se normalizou o comportamento masculino. Mas é mais que isso. É um beijo numa relação hierárquica, sem consentimento, sem solicitação da recetora, com desagrado manifestado e consequente tentativa de desvalorização de quem detém poder.

Todas sabemos como é um ato normalizado um homem usar o seu poder, biológico e institucional, para se impor a uma mulher. Ao longo da história são inúmeros os episódios de objetificação do corpo feminino, traduzindo uma tradição de subalternização de metade da Humanidade, cuja existência apenas se justifica ao serviço da outra metade, suportando todo o tipo de indignidades, humilhações e invisibilidades sociais.

O próprio visado atacou, de imediato, a vítima, pondo a circular falsas declarações e vídeos. Depois os clássicos comentários “se ela não reagiu é porque gostou”. As vozes corajosas levantam-se e criticam, mas de vitimização nada sabem (ou não interessa saber). Porque riu, porque gracejou com a situação, porque não gritou/empurrou/bateu/ou não se defendeu. É sabido, científica e medicamente, que a maior parte das vítimas de abuso sexual ou violação não reage. Chama-se ao fenómeno imobilidade tônica e a assunção de uma culpa que não lhes é devida, sofrendo uma espécie de paralisia temporária devido ao medo e ao stress excessivo provocados pela imprevisibilidade e violência da situação abusiva.

Mas as mulheres e os homens decentes não podem tolerar mais uma sociedade onde o corpo das mulheres e a sua autodeterminação não sejam respeitados. E milhares de espanhóis e espanholas saíram à rua contra o machismo e o marialvismo.

Espanta-me que, nos argumentos de desculpabilização e desvalorização do sucedido, se refira que foi um momento de vitória e euforia. Um argumento falacioso, por ser precisamente o contrário. Um presidente da Real Federação Espanhola de Futebol deveria aproveitar a ocasião para glorificar as mulheres, a sua independência e liberdade, não para sacar um beijo e dar uns apalpões, numa cena digna de um orangotango.

Espanta-me, igualmente, como algumas mulheres defendem Rubiales. Não faz sentido. Porque elas sabem o que é ser mulher. Sabem o que é ser prejudicada por sê-lo. A culpa é sempre da mulher! Este episódio é a mesma coisa que o chefe/ patrão dar um beijo na boca em público, à subordinada, ainda por cima com todos a verem: filhos, marido/namorado, pai, mãe, família e amigos. E a subordinada não é capaz de reagir por surpresa/vergonha/medo.

Já que a Federação Espanhola não tomou a posição na devida altura, a FIFA cumpriu com o seu dever e Rubiales foi suspenso das funções. É preciso ter consciência da gravidade dos factos e é preciso também que existam consequências sobre esses mesmos factos. Os corpos das mulheres não estão à disposição de ninguém! Não existem para ser abusados, não existem para ser tocados sem consentimento. A tentativa de culpabilizar a vítima pelos comportamentos abusivos de terceiros, tem de acabar de uma vez por todas. O que aconteceu é inadmissível e a tentativa de branqueamento dos factos é absolutamente indecorosa.

Contudo, é de louvar a indignação que parece suficientemente solidária e generalizada. Por ver o governo espanhol a condenar sem hesitações o ocorrido, por ver as atletas – as camaradas de Jenni e as de outros países – todas unidas, por ver a FIFA a suspender Rubiales, com dezenas de artigos de opinião, nacionais e internacionais, sem dúvidas sobre inadmissibilidade do ato, perante o qual a vítima muito dificilmente poderia reagir livremente.

Aquele contacto físico íntimo é algo de execrável, ainda que acompanhada pela indignação de muitos homens que poderão sentir que já não podem abusar de mulheres em paz, pois estas levantam a voz e dizem basta. Sobretudo homens acima da meia idade e de uma geração onde o machismo está vivo e de boa saúde, ainda que não se recomende.

Quanto às declarações do nosso Presidente da República sobre o assunto, quando diz que abuso e assédio sexual são “coisas de menor importância “, fazendo jus à sua alcunha de “linguarudo”, não compreende que, há momentos, em que devemos remetermo-nos ao silêncio, que seria a atitude razoável e de bom senso, dado o cargo de privilégio que ocupa. Mais de metade da população portuguesa são mulheres. abusos e assédio sexual são coisas de menor importância para quem?

Em Portugal são violadas mulheres diariamente, a maioria dos assassinatos ocorridos no país são de mulheres em contexto de violência doméstica e o assédio sexual continua a ser bem evidente. Para alguns homens, em situação de poder, nunca é o momento para falar de abusos sobre mulheres, há sempre “coisas mais importantes”. Elas que aguentem, afinal já estão habituadas, vivenciam-nos desde tempos imemoriáveis, tiveram oportunidade de se habituarem a viver com isso.

Procura-se menorizar um tema que diz respeito a todas as mulheres. Nunca é o momento de falar delas. Talvez porque há um grupo com mais força: os agressores, os violadores, os assassinos são na sua esmagadora maioria homens. A violência machista exercida sobre as mulheres é algo estrutural.
A santa mãe de Rubiales trancou-se numa igreja em greve de fome pelo pobre do filho, que considera um exemplo de bondade e carácter, desvalorizando completamente o que o mundo viu. Diz que o seu protesto e manifestação de apoio ao filho irão manter-se até que seja feita justiça, já que aquele é um anjo incapaz de fazer mal a alguém.

O machismo internalizado – o de mulheres que defendem abusos, que dizem que estas se põem a jeito, que o futebol é um desporto de homens ou que dizem que gostavam de ser beijadas por um superior hierárquico se fizessem algo de bem – demora ainda mais do que o óbvio a ser erradicado. Todos os abusos sexuais têm de ser condenados e nenhuma mulher precisa de validação masculina para rigorosamente nada.

Marília Alves

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