David Gonçalves de Almeida
“Mimos de doce das monjas de Lorvão” é o título de uma comunicação proferida pelo Professor Doutor Nelson Correia Borges nas I Jornadas sobre Doçaria Conventual que se realizaram na cidade de Braga em 2014. Igualmente da sua autoria, havia sido publicado no ano anterior o livro “Doçaria Conventual de Lorvão”. Sobre esta obra e o seu autor escreveu Maria José Azevedo Santos, professora catedrática da Universidade de Coimbra: “Dotado de fina sensibilidade estética, exímio burilador da palavra, investigador probo e deveras exigente consigo próprio, o doutor Nelson Correia Borges brindou-nos agora com uma obra que não hesitarei em classificar de preciosa.”
Voltemos à comunicação “Mimos de doce das monjas de Lorvão”. Apesar de exigir um pouco de tempo para a sua leitura sabemos que ainda há quem se interesse por aprofundar estas temáticas e não se contenta com a observação fugaz de galerias fotográficas com um amontoado de imagens ou com a leitura de uma meia dúzia de ideias e frases apelativas, passamos a transcrever na íntegra aquele texto, também ele, uma especial preciosidade nestes dias em que a Doçaria Conventual se “mostra” com todo o vigor em Lorvão.
MIMOS DE DOCE DAS MONJAS DE LORVÃO
Nelson Correia Borges
O mosteiro de Lorvão situa-se a cerca de duas léguas e meia, a nordeste da cidade de Coimbra, por antigos caminhos da serra. Seguindo por modernas estradas a distância cifra-se em 25 quilómetros. Montes circundantes, cobertos de matas e vegetação emolduram o profundo vale onde o mosteiro se estabeleceu, nos confins da Idade Média, ou ainda na Antiguidade Tardia, século VI, com grande probabilidade, nas ruinas de uma vila rústica luso-romana. Os seus fundadores traziam com eles relíquias dos santos mártires orientais Mamede e Pelágio, a quem dedicaram a igreja. Foi instituição prestigiada do antigo monaquismo ibérico e só no século XI adotou a regra de S. Bento.
É conhecido o envolvimento dos monges na reconquista cristã de Coimbra, em 1064, mas muito mais conhecida e notável é a sua atividade cultural, pela qualidade e quantidade de códices iluminados produzidos no scriptorium do mosteiro.
Em 1205, o já centenário cenóbio sofreu uma mudança radical. D. Teresa, filha de D. Sancho I, regressara a Portugal, depois do seu casamento com Afonso IX de Leão ter sido anulado, por consanguinidade. Muito dada às coisas da religião e desejando retirar-se para um ambiente monástico, Lorvão foi o local escolhido, pela sua proximidade da corte. Conjugaram-se as vontades da família real e do bispo de Coimbra para que os monges negros abandonassem a sua velha casa. D. Teresa deu entrada em Lorvão, acompanhada de algumas irmãs e da sua corte pessoal. Introduziu aqui os usos de Cister, que ela tinha conhecido bem, como rainha de Leão. Os hábitos negros deram lugar a hábitos brancos, e Lorvão foi a primeira casa feminina de S. Bernardo em Portugal.
Com uma rainha por fundadora, já que a reforma de D. Teresa se pode considerar uma nova fundação, o mosteiro cisterciense de Lorvão teve a povoá-lo, ao longo dos tempos, donas da mais alta fidalguia do reino. Ainda em vida de D. Teresa foi abadessa a sua sobrinha D. Maria Afonso e alguns anos depois seria uma sobrinha-neta da rainha a ser a donatária do mosteiro: D. Branca, filha de D. Afonso III e irmã de D. Dinis que saiu de Lorvão para ser Señora das Huelgas de Burgos. As ligações à família real vão manter-se muito fortes até ao século XVI, com a presença das Eças, descendentes de D. Pedro I e D. Inês de Castro, e de D. Bernarda de Alencastre, neta de D. Manuel I. As mais poderosas famílias do reino mandam para Lorvão as suas mulheres: Sousas, Briteiros, Soares, Paivas de Riba Vizela, Cunhas e outras. Algumas vinham ainda crianças para o aconchego de tias e por aí ficavam até ao final da vida. Nos séculos XVI e XVII, além das Eças, que depois da perseguição feita por D. João III mudam o apelido para Guerra, são damas de outras famílias a envergar o hábito branco de S. Bernardo em Lorvão: Melos, Albuquerques, Noronhas, Silveiras, Castros, Silvas, Sarmentos e muitas outras. Ao longo século XVIII verifica-se a predominância de uma nobreza de tipo mais rural. Lorvão de Setecentos é casa de Vasconcelos, Maldonados, Lemos, Mouras, Carvalhos, Távoras, Mendonças, Coutinhos, Farias, Proenças, Quadros, Brandões, Almeidas…
E aqui temos as personagens que criaram a doçaria conventual lorvanense. Além das pessoas, existia, obviamente, o cenário adequado para elas: um mosteiro detentor de todas as estruturas necessárias a um bom desempenho.
Em todos os tempos o mosteiro de Lorvão se foi modernizando e enriquecendo, mas foi sobretudo a partir do século XVI que se deu uma profunda renovação de todas as estruturas, pouco restando hoje dos tempos medievais. O novo claustro, ainda dentro do tipo de renascença coimbrã, inicia uma campanha de obras que nunca mais pararam até finais do século XVIII. A grande obra do dormitório, dirigida pelo arquitecto Fr. João Salvado durou de 1681 a 1691. O século XVIII abre com a construção do hospício e casa dos padres, em 1702. A notável abadessa D. Bernarda Teles de Meneses (1712-1715 e 1721-1724), entre outras obras empenhou- se em dotar o mosteiro com mais hospedarias e sobretudo com um refeitório novo e uma cozinha nova, estrutura que muito nos interessa, mas de que nada resta, ao presente. A renovação do espaço litúrgico foi feita de forma magnífica. O coro, projectado por António de Andrade e executado por Gaspar Ferreira, ficou pronto em 1748. A igreja, riscada e acompanhada na sua execução por Mateus Vicente de Oliveira, foi construída e dotada de ornamentos ao longo da segunda metade do século. Coroou-a o monumental órgão, de António Xavier Machado Cerveira e Joaquim Machado de Castro, agora de novo em todo o seu esplendor, pelo restauro a que foi recentemente sujeito.
Neste cenário viveram muitas gerações de monjas, de gostos e cultura refinados, patentes nas obras de arte que patrocinaram, na música que cultivaram, nos dotes literários que exerceram. A doçaria não é mais que um dos aspectos deste refinamento. Não é de admirar. A mais alta nobreza feminina do reino, que povoou Lorvão e outros mosteiros levou consigo os hábitos alimentares de gente da corte ou próxima da corte. A regra monástica era rigorosa na recusa de carnes de quadrúpedes mas omissa no que respeita à doçaria. Os doces conventuais puderam assim reinventar a doçaria de corte e acompanhar as refeições claustrais, sobretudo em dias comemorativos, como um complemento refinado e também compensador para certas carências alimentares que a dieta regral impunha. Estes doces eram distribuídos à comunidade em certas ocasiões festivas. Entravam no refeitório laurbanense nos dias de Entrudo, Ascensão, Santo António, Santa Teresa, S. João Baptista e S. Bernardo, quer em consoada, na véspera, quer como merenda, no próprio dia. Ficou registada nas memórias do mosteiro a merenda que a abadessa D. Catarina de Melo mandou servir às religiosas pela inauguração da casa dos padres e hospício, no próprio edifício recém-edificado, em 1703.
A cozinha do mosteiro, pelos vestígios que se puderam observar, não desmerecia a grandeza da instituição: amplo espaço, com três chaminés, janelas altas e alizar de azulejos. Os trabalhos da cozinha eram encarados como outras tarefas oficinais que as monjas eram compelidas a realizar, em obediência à regra. Mas a confecção de doces seria certamente uma tarefa agradável. Ao desempenhá-la, a madre doceira podia recriar receitas trazidas da casa de família e com este acto matar secretas saudades da vida secular. Podia mostrar a sua capacidade de dirigir e a arte de fazer. Apreciadas e louvadas, estas receitas podiam ser assimiladas e transmitidas como coisa própria da instituição.
É espantosa a criatividade e a variedade conseguida, quase sempre com os mesmos ingredientes desta alquimia deliciosa: açúcar, ovos, amêndoa, farinha e canela.
O açúcar, vindo às toneladas dos engenhos do nordeste brasileiro, entrou triunfante pela porta das cozinhas portuguesas e europeias, graças ao seu baixo custo. A canela, a famosa especiaria trazida do Ceilão, foi o aromatizante predilecto das cistercienses de Lorvão. O miolo de amêndoa e o gosto pelo seu uso abundante é certamente uma herança da ocupação árabe. Três ingredientes voltados para o mundo global, que os azeméis ao serviço do mosteiro adquiriam em grandes quantidades. Já a farinha era produto local, obtido em azenhas que o mosteiro reservava para seu uso próprio, além de muitas outras dispersas pelas ribeiras da região. A espantosa quantidade de ovos utilizada na doçaria conventual de Lorvão atesta a sua abundância. Provinham das capoeiras do mosteiro, de ofertas e, sobretudo, do pagamento de rendas e foros. Só nas terras circundantes, o mosteiro recebia de foros anuais 245 ovos e 108 galinhas. Os moradores de Lorvão pagavam por cada lar uma galinha e 10 ovos. Que fazer a tanto ovo? A doçaria seria o destino natural. Sobretudo das gemas, mas as claras tinham também outra função: a de engomar os hábitos monásticos.
Depois de uma confecção esmerada não podia ser descurada a apresentação. Se um doce era um regalo para o paladar podia também sê-lo para os olhos. É assim que surgem os delicados palitos de flor e de pestana, ou simplesmente os palitos de pá e bico, talhados habilmente e com perícia na branda madeira do salgueiro branco. Os palitos trabalhados foram a nota de requinte supremo na apresentação da lauta doçaria, dando à mesa um toque de bom gosto inigualável. Talhados pelas criadas, passaram os muros da clausura para o povo lorvanense que fez do seu fabrico artesanal um modo de sustento ao longo de muitas décadas.
Mas nem só de palitos se enfeitavam os doces: os paninhos de rendas e os papéis recortados à tesoura e franjados com infinita paciência eram a cama onde se deitavam tais delícias, formando mais um regalo para os olhos. A arte do papel recortado atingiu igual requinte e extrema perfeição em todos os conventos, gerando autênticas obras-primas, rivais das mais belas rendas e filigranas, infelizmente, muitas vezes, de efémera duração. Mas são conhecidos alguns exemplares que causam admiração pela inventiva e composição artística. As madres recortadoras tinham de memória um conjunto de motivos e ritmos decorativos que conjugavam conforme a inspiração de momento, tendo como resultado deliciosos improvisos bem adequados à doçaria a que eram associados.
A doçaria conventual rapidamente extravasou os muros do consumo interno da comunidade, para se tornar num elemento que a projectava para o exterior. Desde logo em ofertas aos hóspedes que com frequência pousavam nas suas hospedarias, mas também a outras personalidades. Era um modo de vincar a importância, o prestígio e a riqueza do mosteiro, através de ofertas que se tornaram frequentes. Os doces constituíam a marca de distinção do convento, por serem a forma eleita para proporcionar prazer e agrado. Eram laços de união entre o convento e a vida secular e com eles pretendia-se assegurar prestígio através de uma vida fácil e agradável. Comer um doce, que proporcionava prazer, podia originar o nascimento de um bom conceito da casa que o tinha confeccionado.
As ofertas, a que chamavam “mimos”, eram servidas nas portarias e locutórios ou mandadas a casa das pessoas a quem se tornava conveniente mostrar atenção ou reconhecimento. Os afortunados destinatários da doçaria sabiam que eram as religiosas as suas autoras, conheciam-lhes o empenho em agradarem e consideravam- se, quando recebiam os doces, além de juízes de um comportamento monástico, pessoas importantes, por terem sido capazes de suscitar o entusiasmo de freiras que pertenciam às melhores famílias do reino. Numa sociedade marcada por uma distinção de classes mais forte do que é hoje, este facto tinha na época enorme importância.
Os conventos eram julgados de acordo com a sua riqueza, pelo aparato das construções, pela estirpe da sua população conventual, pelas pessoas que os tinham protegido, tanto mais se fossem da família real, e, em última análise, mas sem menor importância, pelos doces. Será esta uma das razões do fulgor e qualidade que distinguiu a doçaria conventual portuguesa, e a tornam incomparável com as doçarias de outros países, mesmo com a da vizinha Espanha, mas também há que considerar a grande e continuada rivalidade que neste sector se gerou entre as casas monásticas, ciosas de guardar os segredos dos ingredientes e do saber fazer e interessadas em marcar a sua posição. Esta rivalidade foi também um factor determinante para se alcançar a grande variedade, excelência e riqueza da doçaria conventual de Portugal.
Em Lorvão, pode dizer-se que as ofertas de doces atingiam toda a gente. Mesmo já muito depois da extinção e vivendo com muitas dificuldades de subsistência, as monjas laurbanenses continuaram a oferecê-los. Ainda ouvi testemunhos de pessoas de Lorvão que os tinham recebido na portaria, numa das rodas que foi posteriormente tapada, ou descidos por um cestinho, desde as grades da abadessa. A despesa que alguns livros do mosteiro registam pela aquisição de tigelinhas e caixas é bem indiciadora deste hábito frequente. Mas eram principalmente oferecidos aos visitantes e hóspedes ilustres. Nestes casos tomavam genericamente o nome de “mimos” ou “colacções” e assim foi com os distintos convidados para a trasladação das Santas Rainhas, em 1715, ou com a hospedagem do General Welligton, em 1810. Como escreveu a madre escrivã, Lord Wellington com o seu Estado-maior sustentou-se por sua conta, “sem que do Mosteiro fosse mais que algumas cousas para o serviço e um mimo de doce que agradeceu muito à Prelada”.
Não chegaram até nós livros de receitas, ou quaisquer apontamentos, ou, em rigor, não são conhecidos até agora, o que não quer dizer que não tivessem existido. O processo desastroso da extinção das ordens religiosas foi especialmente lesivo para Lorvão. A incorporação de documentos nos arquivos e bibliotecas foi feita por diversas vezes, sempre com a preocupação dominante de salvaguardar os registos das propriedades e bens materiais. Grande parte da documentação e livros que ficaram ao deus-dará em Lorvão, como coisa sem valor, teve como destino ser lançada à ribeira durante uma cheia de inverno.
Todavia, o secretismo que envolvia as tarefas da confecção, imprescindíveis à afirmação do prestígio da comunidade, era propício a que os conhecimentos, os segredos do saber fazer fossem passados de boca a orelha. A aprendizagem fazia-se empiricamente, pelo ver e ouvir como se processava. Assim passou para as criadas do mosteiro e destas para algumas eleitas do povo de Lorvão. No entanto a documentação relativa a despesas refere uma infinidade de doces que é bem elucidativa da riqueza da doçaria laurbanense: pastéis, manjares brancos, confeitos, milharós, maçapães, tigeladas, broas e farténs de amêndoa, biscoitos, talhadas, manjar real, marmelada, marmelada de sumos, perada, cidrada, pêssegos cobertos, broas de ovos, ovos moles, capelas de ovos, ginetes, tortilhas, queijadas, linguadas, morgados, papos de anjo, caramelos, melindres, bolos de bispo, alfitetes e muitos outros. Coligiram-se ao todo 53 receitas, na sua maior parte de transmissão oral.
A doçaria conventual de Lorvão é maioritariamente constituída por pequenos e delicados doces. Quase todos os produtos se podem considerar na classe de bolos ricos. Apenas algumas receitas nos remetem para doces mais singelos, em geral na classe dos secos ou sortidos, tais como os biscoitos de Lorvão, os caramelos, as cavacas de Lorvão, os confeitos, os derriços, os ginetes, os melindres e as súplicas. Nem sempre é muito evidente esta separação entre bolos ricos e bolos pobres, tudo dependia da ocasião em que eram consumidos ou da personalidade a quem eram oferecidos. Não se ofereciam melindres a um alto dignitário, nem lampreia doce a um visitante comum. Além dos pequenos doces, cuja lista é imensa, e dos bolos grandes, de que se coligiram quatro receitas, é rica a variedade dos doces de colher: botelhada, cidrada, doce de amêndoas, doce de laranja, três manjares – branco, divino e real –, ovos doces, ovos moles, perada e tigelada.
As receitas da doçaria conventual de Lorvão encontram-se publicadas e acessíveis. Com facilidade se poderão reconstituir tais mimos. Com gosto e paciência sairá, certamente, uma especialidade semelhante à das freiras deste mosteiro que bem poderão ser recordadas durante a confecção, enaltecendo a sua memória, como autênticas fadas duma alquimia sagrada, transformadora de ovos, farinha, açúcar e amêndoas em verdadeiras obras de delicioso prazer que agora podemos comungar. E degustando um doce conventual de Lorvão estaremos saboreando um pedaço da história deste mosteiro de tantas e tão portentosas memórias, mesmo na arte da doçaria.
David Gonçalves de Almeida